Bocados de Ar

Porque as palavras não passam de bocados de ar

terça-feira, setembro 14, 2004

Meninos, eu vi

Amavam-se e, enfim, casaram-se. A teoria dos opostos se aplicava como nunca a eles. Apesar de ser de um tamanho inexpressivo, coisinha franzina, quase esquálida, Neném* era daquele tipo de gente que não leva desaforo para casa, para quem qualquer coisinha é ofensa digna de revanche. Minha Vida*, por sua vez, era imponente, grande para todos os lados, mas de uma calma placidez.
O amor, no entanto, pulou pela janela quando o ciúme entrou pela porta. No começo, era só o normal, o socialmente aceitável (e, às vezes, até desejado) mas a coisa se desenvolveu num crescendo tal que a violência familiar começou a se manifestar. Um grito, dois, seguidas agressões verbais, até que aconteceu: o tapa. Daí prá frente, Neném virou vítima constante da pior forma de demonstração de amor: a possessividade cega. Nem família, nem amigos entendiam porque que uma pessoa que nunca aguentou nada de ninguém se submetia àquele tipo de vida. Mas, como em briga de marido e mulher, não se mete a colher, nada era dito, ninguém tentava se meter.
Depois de várias surras, escoriações, hematomas, queimaduras e membros quebrados, Neném -- que, mesmo nos momentos das surras e gritos, continuava sendo "Neném" -- resolveu se separar de Minha Vida. Não aguentava mais tanto sofrimento e tantos pedidos de desculpas posteriores. Tinha cansado de perdoar hoje para apanhar mais amanhã. Aguentava ainda menos a chacota diária dos colegas de profissão, que nunca entenderam como que Neném, motorista de táxi, homem bravo, daqueles que não levava desaforo para casa, suportava tantos e tão humilhantes tabefes de sua esposa, carinhosa e eternamente chamada de Minha Vida.
Neném se separou e sofreu mais do que se tivesse levado a maior das sovas. Magricela que já era tornou-se um fiapo de homem. Quase um esqueleto. Nunca mais arrumou outra pessoa que o completasse como Minha Vida. Passou a viver só e amargurado, apesar de nunca mais apresentar sequer um mínimo arranhão.
Minha Vida, entretanto, casou-se de novo. Com homem que a subjugava e, eventualmente, espancava. Minha Vida nunca reclamou e até parecia gostar. Dizia estar feliz. Se mudou junto com o novo marido -- "homem forte e viril" -- para uma casa vizinha à que compartilhou por anos com Neném.
Neném nunca entendeu. Passou o resto de sua curta existência a ver Minha Vida desfilando seu olho roxo, de braço dado com seu homem e sorrindo de orelha a orelha.
Neném morreu. Se de inanição ou de inconformismo, ninguém sabe.
O que se sabe é que Minha Vida continua lá, feliz com seu olho (por vezes, olhos) roxo, a cantarolar e sorrir de orelha a orelha.

* Essa é uma história real. Juro. Os nomes foram trocados para evitar constrangimentos, processos e todo aquele blábláblá.