Bocados de Ar

Porque as palavras não passam de bocados de ar

segunda-feira, fevereiro 24, 2003

Se não se chamasse rosa-sintomas da estagnação

Vida estagnada. Grande oceano sem nenhuma onda. Nem onda que me levante, nem onda que afunde meu barco. Nada, nada. Sem nenhum grande amor para doer até o fundo da minha alma. Para me fazer perder a consciência de mim. Para me fazer perder o rumo de casa. Para me desnortear. Para me envenenar e entorpecer minhas veias. Nada. Nenhum problema sério com o qual eu deva realmente me desesperar. Achar que, se não resolver, vou morrer. Para me apavorar ao ponto de querer fugir. De querer sumir. De querer outra vida. Ou, até existe, eu é que não estou conseguindo me desesperar mesmo. O mormaço é dentro de mim. Perdi a capacidade de ser intensa. Nunca vivi intensamente mas sempre senti intensamente. Vivendo de sentimentos profundos, abismos intransponíveis, sempre questões de vida ou morte, mesmo que não fossem. Para mim eram. Tivesse nascido escritora, e pudesse eu escolher uma época, seria uma Romântica. Boêmia, escrevendo versos desvairados, com os olhos injetados, com amores de perdição, vivendo cambaleante em botecos suburbanos, me arrastando na miséria, cantarolando boleros antigos, canções de amor, psicografando meu sofrimento, cuspindo tudo num papel, maldizendo o que me rodeava, sendo arrogante com os grandes, porque eu seria grande, meu espírito seria grande e isso me bastaria, mesmo que todos me vissem como um fardo social, e, paralelo a isso, teria meu lado plácido, de contemplação platônica do meu amor, meu grande amor, algo supremo, sublime, minha própria essência, sem perceber o quão efêmero ele seria. Viveria assim até meus vinte e três anos quando, num surto de tosse decorrente da tuberculose que me consumiria há muito, morreria só. E me chamaria Marguerite. Ou Catarina. Enfim, não teria a rosa o mesmo perfume se não se chamasse rosa?
Principalmente, saberia colocar em palavras o que sinto. Mas não sou escritora. Muito menos poetisa. As palavras me faltam. As palavras nunca me bastam. Os sentimentos expressados sempre ficam capengas por não existirem expressões que os mostrem sem prejuízo de suas verdadeiras cores. As cores são ideais para expressá-los. Mas só eu sei ver minhas cores. Só eu sei o que significam para mim. O meu azul não é o seu azul e você nunca vai entender o meu azul. Mesmo que tente, sinceramente. É a nossa essência. Nascemos sós, morreremos sós. Por mais rodeados que estejamos de pessoas, por mais que elas nos amem, nunca nos entenderão ao certo. O que as pessoas captam é a superfície, é o mínimo que deixamos transparecer. Todos somos abismos sem fim, nunca alcançáveis. Por ninguém. Nem por nós mesmos. Eu tentei alcançar o fundo do meu abismo. Tocar o fundo, encostar a mão no que quer que forme este fundo. Mergulhei. Vi que ficava cada hora mais escuro, mais desconhecido. A luz já desapareceu há muitos séculos. Segundos, horas, dias, anos. Séculos. Muitos séculos se passaram em uma só vida. O tempo, aliás, perdeu seu sentido. O tempo não existe. Nessa empreitada me perdi. Não sei mais voltar. Agora me questiono se realmente perdi minha intensidade. Acho que ela só se agravou. É um Universo inteiro concentrado dentro de mim. Na iminência de se expandir. Como uma fórmula supersaturada: absolutamente instável, ao menor sopro vai se cristalizar. Se não aparece, se não vem à tona é porque eu não deixo. Tenho medo de perder o controle. Tenho medo de ser tão grandioso que devore a mim e eu fique louca. Grandes gênios sempre enlouquecem. É muita energia para uma pessoa só. É muito rápido. É muito forte. A válvula de escape é a loucura. Grandes sentimentos nos enlouquecem. Tenho medo de ficar louca. Tenho medo de ter medo de ficar louca. Não quero ter medo de ficar louca. Quero deixar que a minha intensidade flua. Mas sei que ela vai me arrebatar, me inundar, me afogar. E eu vou sofrer. Talvez mais do que aguento. E vou morrer. Vou transcender tudo que sou agora e virar outro ser. Não melhor, não pior, mas outro, que não conseguirá se conter num só corpo físico. Que estraçalhará tudo em que tocar. Como um Hércules, que sendo absurdamente forte, não conseguia controlar sua força, e, no calor de uma luta, matava culpados e inocentes. E depois chorava.
Acho que já estou louca. Só disfarço e as pessoas não percebem. Ninguém conhece ninguém. A nossa casca nos protege.
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É a Fênix. É tudo culpa dela.