Bocados de Ar

Porque as palavras não passam de bocados de ar

segunda-feira, agosto 12, 2002


E, para terminar bem o dia, um texto legal... Mas, antes, um prefácio:

Há muito tempo atrás, eu estava lendo o MATCHBOX, que acompanho diariamente, quando li um post sobre Veneza e me comovi.
Deixei um comentário e o Abrão, gentilmente, me mandou o texto na íntegra, que guardei.
Bem, agora vou postá-lo para vocês...
Aí vai ele e, como diria minha amiga Nina Rosa, enquanto confabulávamos a respeito do filme Fim de Caso, é "só para pessoas sensíveis..."

Veneza, o tempo e o lodo
(Carlos Heitor Cony)

Foi Sereníssima República e Porta do Oriente. Berço das caravelas que descobriram o resto do mundo. Cenário de Shakespeare, das festas venezianas, da arte do vidro -Casanova, Veronese, Marco Polo, Vivaldi, toda uma escola de arte que ficou entre as melhores da história humana. Apesar disso -ou por causa disso-, Veneza continua apodrecendo em luxo e beleza, uma agonia nobre, de doge medieval. Olhada em conjunto, a cidade merece a sua desgraça porque ainda merece a sua glória.

Como o reino de Deus, ela não foi feita para este mundo. E a decadência que se prolonga nos últimos séculos apenas acrescentou mais encanto aos fatigados palácios chafurdados no lodo.

E mais feitiço em suas pontes e casas com peitoris florindo de gerânios. E suas gôndolas negras, elegantes e fúnebres, cravos vermelhos abertos nas proas afinadas: à noite, o cravo é substituído por uma chama que ilumina em silêncio as águas esverdeadas e escuras da laguna.Quem gosta de cinema lembra Rossano Brazzi e Katherine Hepburn num sucesso dos anos 50, "Summertime in Venice", a música é tocada até hoje, em surdina, sob as pontes que cruzam o Canal Grande. Há também a voz rouca de Charles Aznavour lamentando que Veneza é triste. Quando o turista não é muito exigente, os próprios gondoleiros se encarregam de cantar o "Anônimo Veneziano" (Cuore, cosa fa?), sim, só Veneza tem clima para essas coisas e cantos. O cheiro das águas paradas. Nas igrejas desativadas, feitas de boa madeira das florestas de Friuli, há concertos de música antiga, partituras assinadas por venezianos anônimos, um deles, sabe-se hoje, foi Marcello, e quem quiser ouvir Benedetto Marcello pode ir a San Pietro di Castello, no órgão restaurado que é um dos melhores da Europa -e tudo isso é muito bom e eterno para afundar no delta formado pelo rio Pó: no pó e na memória dos homens.

Em Veneza, tudo é fluido, brilhante: o saguão do Danieli, o imenso lustre rendado no hall principal. O barulho da água batendo no casco envernizado das gôndolas. A concha do teatro Fenice, as cúpulas douradas de San Marco, a basílica parruda e levantina, o apito dos vaporetos, o balanço do cais em cada estação do metrô de água -e o labirinto daquelas "calles" (lá não existem vias como em outras cidades italianas, mas calles, como no mundo hispânico). E, acima de tudo, o sol seguindo o curso do grande canal. Quando cai a noite, em alguns ângulos da cidade é fácil surpreender os fantasmas do poder ou do amor. Cidade decadente, cadente, no coma de muitas águas e lembranças.

Na imensa praça, que Napoleão considerava a mais bela do mundo, sala de visitas da Europa, cada café tem sua pequena orquestra, um repertório belle-époque, foxes de operetas antigas, "Hindustan", "The Sheik of Araby", "Amapola" -tudo parece já ter acontecido: de repente.
Naquela passagem abobadada que leva ao Cavaletto, passaram os grandes de Veneza, os Dandalos, os Foscari, os Candianos, os Contarines, os Falieros, os Renzos, os Grandenigos, os Mocenigos, os Bembos, os Pisanos, os Cornaros. E, naturalmente, Ruskin e, por causa dele, Marcel Proust.

No Café Florian, a turista sueca, cabelos brancos e óculos grandes, parecida com Greta Garbo na velhice, lê T.S. Eliot. O garção lhe serve aquavit com gelo num cálice rendado. Lá fora, os músicos acabaram de tocar "Fascinação" e descansam, olhando os pombos que voam diante da basílica.

Nas lojas ao redor, brilham os cristais vermelhos, azuis e verdes dos cinzeiros murano, as máscaras prateadas de pierrôs banhados de luar. "Arranca a máscara da face, pierrô, para sorrir de sua dor" -não há lugar para o "povero Arlechino" da ópera de Leoncavallo.
O mundo, embora o mereça, ainda não afundou. Quem afunda, vagarosamente, dois, três centímetros por ano, no lodo e na história, é a própria Veneza, com seus palácios de mármore e sombra. No cemitério de San Michelle, está enterrado aquele que muitos consideram o maior poeta do século, Ezra Pound.

Ali, depois da ponte que faz uma curva no espaço, a casa de Lorenzo Perosi, o pequeno "harmonium" no qual escreveu sua "Pontifical". Quando se está perdido nos becos atrás de San Marco, de repente um cheiro de pão e azeitonas pretas, é só entrar na primeira birosca e tomar spumoni gelado com bolinhos de bacalhau -parece que não combina, mas em Veneza tudo combina enquanto há vida. A urgente vida.
Pois há um apelo triste no amor que se faz e se tem por Veneza. Um apelo final e calmo. Thomas Mann fez aquele músico inspirado em Mahler morrer na praia do Lido, num final de verão, engolindo sem prazer os últimos acordes de sua sinfonia e a beleza de um jovem que apontava o sol caindo sobre a laguna.

A decadência da nobre Veneza, com cheiro de morte e flor. Tantas vezes o mundo acabou, mas começou de novo. Veneza não. Está acabando, lentamente, sem pressa, sem vontade de pertencer ao universo de acrílico e néon que fabricamos e será o legado para aqueles que herdarão a terra, mas não herdarão Veneza -cidade sepultada e viva, soberana das águas, sereníssima senhora do tempo e do lodo.